sexta-feira, 11 de abril de 2008

REPRESENTAÇÕES SOCIAIS II

Representações sociais sobre aids de pessoas acima de 50 anos de idade, infectadas pelo HIV1


Marislei BrasileiroI; Maria Imaculada de Fátima FreitasII
IMestre em Enfermagem, Coordenadora do Curso de Enfermagem da Universidade Paulista, Docente da Universidade Católica de Goiás, e-mail:
marislei@cultura.com.brIIPós-doutor em Sociologia da Saúde, Professor Adjunto da Escola de Enfermagem da Universidade Federal de Minas Gerais, e-mail: peninha@enf.ufmg.br


RESUMO
Neste trabalho, analisa-se as representações sobre AIDS de 9 pessoas acima de 50 anos, infectadas pelo HIV. Da análise, surgiram representações: 'AIDS é uma ameaça constante de morte'. Essas foram categorizadas e nomeadas pelas falas dos entrevistados: 'médico nenhum pensa, primeiro, que a gente pode ter AIDS'; 'AIDS não é câncer'; 'ser velho e estar com AIDS é ser duplamente discriminado'. Os resultados mostram a importância da integralidade dos cuidados pelos serviços de saúde para diminuir o sofrimento psicossocial dessas pessoas.
Descritores: saúde do adulto; enfermagem; síndrome de imunodeficiência adquirida


INTRODUÇÃO
Chegar à idade avançada já não é mais privilégio de poucas pessoas. Porém, a preocupação não é com a longevidade hoje experimentada por muitos, mas com a boa qualidade de vida, sonhada por todos, privilégio de alguns.
Nessa busca por melhor qualidade de vida, o Estatuto do Idoso institucionaliza uma política social de valorização dos mais velhos no Brasil e questões diversas sobre a terceira idade são, cada vez mais, objeto de interesse dos pesquisadores das áreas da saúde, da educação, do direito e das ciências sociais, incluindo-se aí as questões ligadas à prevenção e ao controle do HIV/AIDS.
A Política Nacional do Idoso foi instituída através da Lei n.º 8.842, de 04/11/94, e regulamentada através do Decreto n.º 1948, de 03 de julho de 1996, com o objetivo de atender esse segmento da população. Algumas campanhas de prevenção contra a AIDSem idosos vêm sendo organizadas em cumprimento ao Artigo 10 do Capítulo IV, que visa garantir ao idoso a assistência à saúde, nos diversos níveis de atendimento do Sistema Único de Saúde, além de prevenir, promover, proteger e recuperar a saúde do idoso, mediante programas e medidas profiláticas(1) .
Frente aos avanços da tecnologia e da atenção à saúde, as pessoas da terceira idade vivem uma nova realidade nunca antes experimentada em outras épocas, nesse período da vida. No entanto, as pessoas com idade acima de 50 anos e com baixa escolaridade, quando infectadas com o HIV, tendem a manifestar os efeitos da imunodepressão de forma mais acelerada que as pessoas jovens, porque têm acrescido a AIDS, os efeitos de outras doenças que freqüentemente aparecem com a aproximação da terceira idade. Em se tratando de pessoas com 65 anos ou mais, os efeitos são ainda mais graves.
Além disso, há desinformação, preconceitos e dificuldades de acesso aos Serviços de Saúde, o que provavelmente contribui para o aumento dos casos de HIV/AIDS, além disso, há a subnotificação dos casos e o fato de a epidemia estar atingindo indivíduos com menor escolaridade. Esses fatores são constatados no trabalho quotidiano das pesquisadoras, ao lidarem com questões relativas à Saúde do Adulto e Idoso na prática dos serviços de saúde. Além desses de caráter mais geral, percebe-se também negação do risco de infecção pelo HIV nesse grupo, tanto por parte dos usuários dos serviços de saúde, quanto dos profissionais que atendem os idosos (2).
Em estudo recente, médicos do Hospital da Universidade de Chicago relatam, por exemplo, que "muitos profissionais que atendem idosos não conseguem associar AIDS e pessoas idosas, pois a questão da percepção do risco não existe ao se olhar essa população"(3).
Na ausência de vacinas, de uma cura efetiva para a síndrome e apesar do número de pessoas com idade acima de 50 anos com AIDSestar aumentando (4), pode-se constatar que há um vazio de conhecimento sistematizado sobre esse grupo, sobretudo no que diz respeito à qualidade de vida e enfrentamento da doença, incluindo-se aí as representações dessas pessoas em torno do acontecimento do HIV em suas vidas.
Estudos dessa natureza poderão contribuir para a discussão dos direitos das pessoas com idade acima de 50 anos, para melhorar o seu acesso aos serviços de saúde e ainda para subsidiar o desenvolvimento de ações de prevenção ao HIV/AIDS, especialmente aqueles do Programa de Saúde da Família.
Assim, pretendeu-se com o presente estudo analisar as representações sociais de pessoas com idade acima de 50, anos portadoras do HIV/AIDS, compreendendo como a existência dessa infecção está representada pelo sujeito que sofre a doença, com a finalidade de construir subsídios para novas formas de prevenção e controle da infecção.

MÉTODOS
O estudo foi de abordagem qualitativa, centrado na expressão da subjetividade dos sujeitos, utilizando-se a teoria das representações sociais. Na análise, buscou-se os núcleos centrais e periféricos(5) para quem as representações sociais são "elementos que se estruturam em torno de um núcleo central e de núcleos periféricos para a sistematização do conhecimento na busca do aprofundamento do objeto". Na pesquisa qualitativa, são extraídos resultados, como opiniões, atitudes, sentimentos e expectativas, que formam, no seu conjunto, a expressão social do grupo específico estudado, numa determinada sociedade e num determinado tempo, enfim, a influência das práticas sobre as representações (6) .
Referencial teórico
Todo indivíduo se desenvolve em uma realidade social, com necessidades e significados culturais, que moldam os próprios valores e que se expressam no quotidiano, por meio de representações sociais construídas, no senso comum, nas interações, nas ideologias e nos modos de viver das pessoas.
Forgas(7) apóia-se em Moscovici(8) para assinalar que a noção de representação social remete a um conjunto de conceitos, afirmações e explicações originadas no quotidiano, no curso de comunicações interindividuais, sendo equivalentes, em nossa sociedade, aos mitos e sistemas de crenças das sociedades tradicionais e podendo ser vistas como versão contemporânea do senso comum.
A descontração das conversas, a força dos argumentos encontrados no calor das discussões de fim de tarde, vão dando aos "faladores", ao mesmo tempo, competência enciclopédica sobre os temas da discussão: à medida em que a conversa coletiva progride, a elocução regulariza-se, as expressões ganham em precisão. E cada um fica ávido por transmitir o seu saber e conservar um lugar no círculo de atenção que rodeia aqueles que 'estão ao corrente', cada um se documenta e ali continua no páreo, familiarizando-se com o que não estava ainda conhecido.
Sob o ponto de vista da dinâmica da familiarização com o não-familiar, esclarece que as representações sociais envolvem dois processos: a objetivação (transformação do abstrato em algo quase físico) e a ancoragem (amarração)(8).
Para acessar essas representações propõe a Teoria do Núcleo Central, elaborada a partir da hipótese de que a organização de uma representação apresenta uma característica particular: não apenas os elementos da representação são hierarquizados, mas, além disso, toda representação é organizada em torno de um núcleo central, constituído de um ou de alguns elementos que dão à representação o seu significado. Essa teoria sugere que se pode conhecer com mais particularidade o caráter essencial de uma determinada representação.
Dessa forma, as representações direcionam a ação, ou seja, o modo pelo qual os indivíduos vislumbram a realidade determina a sua forma de estar no mundo. Assim, pressupõe-se que as maneiras de se prevenirem ou de se cuidarem, após a infecção, estão no cerne da subjetividade das pessoas que vivem a experiência de ter HIV/AIDScom idade acima de 50 anos. Tal experiência vem carregada de crenças e valores que organizam o seu comportamento face à enfermidade.
Muitas vezes, no cotidiano, as pessoas somente percebem o risco e a gravidade de uma enfermidade quando são por ela acometidas e "se antes não havia risco, nem de adoecimento, com a doença, o risco é visualizado como sendo de morte". Dessa forma, as atitudes das pessoas frente a uma enfermidade grave, mesmo que seja uma pandemia, nem sempre vêm acompanhadas da percepção de que são susceptíveis de se infectarem, o que leva, por vezes, à negligência quanto aos modos de prevenção.
Sujeitos da pesquisa
As entrevistas foram realizadas com 9 pessoas soropositivas para HIV/AIDS, internadas em um hospital público de Goiânia, Goiás, entre agosto e dezembro de 2003. O número de entrevistados não foi definido a priori, totalizando 9 (nove) ao final, sendo 2 com 52 anos de idade, 3 com 60 anos e 4 com 64 anos de idade. Utilizou-se o critério de saturação dos temas tratados pelos participantes para interrupção da coleta. Os entrevistados optaram por conceder a entrevista no próprio hospital em que estavam internados, e nos dois serviços de apoio ao doente de AIDSda capital.
Aspectos éticos
Um formulário de consentimento livre e esclarecido, contendo as informações sobre o estudo e as condições de participação, foi apresentado aos participantes para ser assinado, conforme a Portaria 196/96 do Conselho Nacional da Saúde(9). Não houve nenhuma negativa por parte dos entrevistados, que se dispuseram a falar sobre si mesmos, salvaguardando suas identidades, com uso de códigos para a análise e apresentação dos resultados.
Os participantes foram informados sobre os objetivos da pesquisa e sobre o aspecto voluntário da participação, com preservação do anonimato, e ainda sobre o direito de se retirarem do estudo em qualquer momento sem sofrerem nenhuma pressão ou prejuízo no acompanhamento pelos serviços de saúde e de apoio social.
Além disso, vale lembrar que a pesquisa de cunho sociológico é, antes de tudo, uma forma de expressar, de forma sistematizada, a visão e a história de vida das pessoas, sendo fundamental, portanto, manter respeito profundo por seus depoimentos, da coleta à análise.
Coleta de informações
As informações foram obtidas em discurso oral, face a face, mediante entrevista aberta e em profundidade, com o uso de gravador áudio e as fitas cassete foram codificadas e guardadas pelas pesquisadoras, devendo ser destruídas após a publicação dos resultados.
Após a autorização do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais e das instituições pesquisadas, a coleta de informações foi realizada no Hospital de Doenças Tropicais, no Condomínio Solidariedade e no Centro de Apoio de AIDS, em Goiânia, com pacientes da capital e de cidades próximas: Aparecida de Goiânia, Rio Verde, Piracanjuba, Edéia e Santa Rosa.
Análise das informações
Fundamentando-se na lógica da trajetória subjetiva(10), buscou-se, através da análise da narrativa, a desconstrução e a reconstrução dos discursos, extraindo, assim, as categorias de análise.
Após a transcrição literal dos depoimentos dos participantes, foram realizadas, com base na teoria das representações sociais, a leitura e a releitura deles, atentando-se para o processo de leitura horizontal de cada entrevista, procurando-se no conteúdo do texto as informações relativas às representações para uma primeira categorização empírica, mediante os temas abordados pelo próprio sujeito.
Logo após, todos os segmentos coincidentes em torno de um mesmo objeto do discurso foram agrupados, nomeando-se provisoriamente cada grupo de segmentos, quando se buscou a segunda categorização empírica.
Com base na categorização empírica, foi feita uma leitura transversal do conjunto de entrevistas, mediante a organização do conteúdo em blocos temáticos, sendo considerados os reagrupamentos de cada entrevista e comparados às conjunções e às disjunções do conjunto de entrevistas.
Nesse sentido, a análise seguiu os seguintes passos(11-12): transcrição fiel das entrevistas gravadas em áudio, leitura vertical, elaboração de um 'parágrafo' que sintetize a fala do sujeito, análise horizontal, nomeação das seqüências, primeira categorização, busca dos elementos centrais e periféricos das representações por densidade na estrutura do discurso, elaboração de um esquema hierárquico das representações, análise aprofundada com leituras de outros autores sobre as representações encontradas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
Do grupo estudado participaram quatro mulheres heterossexuais e cinco homens, com idades entre 52 e 65 anos, sendo que dois homens apresentaram-se como heterossexuais e três afirmam fazer sexo com homens; todos se apresentaram como pobres e tendo como nível de escolaridade somente o primeiro grau incompleto.
O grupo é composto de solteiros, viúvos ou desquitados, isto é, sem vínculo com um parceiro estável e na categoria de exposição, há predominância de exposição sexual (oito deles) e uma pessoa que acredita também ter sido por essa via, mas não tem certeza por ter sido usuária de drogas. O grupo está, portanto, dentro do perfil epidemiológico da AIDSno Brasil, como descrito nas estatísticas do Ministério da Saúde(4), que revelam número maior de pacientes infectados pela via sexual. A infecção pelo HIV é passível de atingir homens e mulheres de qualquer idade, cor e condição social, religião e nacionalidade, sendo o comportamento sexual a principal via de transmissão, como já descrito pela epidemiologia desde os anos 90 do século XX.
Quanto ao uso do preservativo, os entrevistados afirmam que não faziam uso de preservativo, antes de serem infectados pelo HIV.
Por meio do relato dessas pessoas, identificadas no texto por E1, E2..., buscou-se, neste estudo, discutir como a existência do HIV/AIDSestá representada pelo sujeito que sofre a doença. A opção pela Teoria das Representações Sociais e, basicamente, a busca do núcleo central e do sistema periférico, isto é, do que é fixo, 'duro', mas não imutável, e o que é móvel e flexível e, por isso mesmo, passível de mudanças mais rápidas, nas representações em torno da experiência da doença, permitiu a identificação dessas representações, discutindo-se também como elas estão se refletindo no cotidiano dessas pessoas(6) .
O sistema periférico das representações em torno da infecção pelo HIV
"Médico nenhum pensa, primeiro, que a gente pode ter AIDS"
A análise das falas dos entrevistados aponta a existência de uma representação sintetizada na frase: ninguém desconfia que velho tem (AIDS) (E6), o que parece dificultar a definição diagnóstica: Aí internei, depois saí do hospital e continuava a mesma diarréia e perda de apetite[...] o médico não achava nada[...] não pedia nada. Médico nenhum pensa primeiro que a gente pode ter AIDS. (E1); Fui num médico, fui noutro, ele tirou radiografia. O remédio que eu estava tomando parece que era errado[...] Disseram que era herpes e que precisava de otorrino. Aí foi que eu fui no otorrino e ele me indicou para o doutor que pediu o exame desse trem que oceis fala. Eu fiquei no hospital onze dias, eu não vi o exame, a dotora só falou, não me mostrou. Eu também nem podia imaginar que tinha. (E7).
A experiência dos sujeitos os leva a representar o médico como aquele que não sabe o que ele tem e nem o encaminha corretamente para a definição do diagnóstico. O paciente, de seu lado, não se supõe infectado, ou não quer imaginar isso. Forma-se, desse modo, um ciclo vicioso, no qual se inclui o fato de que o médico não acredita que o idoso possa estar infectado com o HIV e, por isso, não pede o exame imediatamente diante dos primeiros sintomas. O paciente também não acredita no médico, porque não é atendido como gostaria. Dessa forma, sem seu problema resolvido, sem condições e nem conhecimento para resolver sozinho, caminha para o agravamento dos sintomas, culminando, muitas vezes na morte do sujeito.
Assim, faz-se necessário reelaborar continuamente o trabalho de prevenção, que é também da ordem de repensar o que está constituído culturalmente, buscando ultrapassar os limites da simples informação, construindo atividades de educação em saúde que sejam eficazes para profissionais e população.
"AIDS não é câncer"
Continuar vivendo é um desejo para a maioria, após um período mais ou menos longo de desespero. Representações sociais sobre outras doenças surgem, como forma de comparação: Cê tem que levantar a cabeça e continuar, porque isso não é o fim do mundo, pior é um câncer que te mata de uma hora prá outra, né ? (E1); Pelo menos num é um câncer. Porque esse trem é o seguinte, a doutora falou que se eu tomar os remédios direitinhos, o coquetel, eu num saro, mais tem cura. Posso viver de dez a vinte anos, agora se fosse um câncer, cê mexeu acabou, o câncer é fatal. (E7); Não é um câncer, né, mas se fosse eu podia até falar disso mais fácil! (E1).
Tais argumentos mostram que os sujeitos relacionam o câncer com a AIDS, representando as duas doenças numa escala de gravidade, provavelmente devido ao fato de que a AIDSé uma doença nova e o câncer é uma doença concretizada como perigosa, que mata. Porém, pode-se supor que a referência comparativa com o câncer é somente uma forma de se construir uma esperança para sua situação, fundamentando-se num imaginário social, que não é tão forte assim, fazendo com que a AIDSse torne mais aceitável que o câncer, que é doença que 'tira pedaço' e é fatal logo depois de diagnosticado (E7). Tal representação expressa, pois, uma reação da pessoa infectada pelo HIV frente à sua contaminação, como um mecanismo de defesa ao falar que há situações piores que a AIDS, no caso, o câncer.
A comparação da AIDScom o câncer aparece, também, para apontar as dificuldades relativas ao medo de ser descoberto e de ter desvelado a sua sexualidade, a AIDStrazendo a representação de ser doença de homossexual masculino: Na minha situação (pelo fato de ter relações sexuais com outros homens), do jeito que eu vivo, todo mundo que fica sabendo vai logo pensando mal... (E1).
A AIDS foi nomeada, inicialmente, como 'um câncer gay', sobre o qual se criou medo generalizado, sobretudo pelo fato de que estar infectado significava mostrar sua homossexualidade e ser condenado socialmente. Se é um câncer, mas não um 'câncer gay', fica mais fácil declará-lo é o que se escuta da fala de E1.
Nesse sentido, já não se ouve mais dizer que a AIDS é 'um câncer gay', mas o preconceito sexual permanece. Continua-se a descrever as possibilidades de realização afetivo-sexual homoeróticas como doença, anomalia, neurose, perversão etc. Com isso, querendo ou não, cria-se problemas morais graves para muitos indivíduos com esse tipo de opção sexual, que vão refletir na forma como reagem diante da infecção pelo HIV, buscando esconder suas situações de vida.
Os núcleos mais próximos do centro
Essas representações fazem parte do sistema mais periférico, já apresentado, e conservam a especificidade relacionada à idade, mas têm os mesmos fundamentos das representações sobre AIDS na população em geral.
"Ser velho e estar com AIDS é ser duplamente discriminado"
Ninguém mais me quer, ninguém quer chegar perto de mim. Todo mundo que me via, falava: 'olha lá: esse é HIV!' Um mostra pro outro, sabe? No começo era desse jeito e agora, não tô nem aí... (E2); Depois que eu fiz o exame veio o preconceito: minha família descobriu, os vizinhos todos descobriram [...] Povo besta! [...] Aí já começou a me discriminar, me jogar pra lá (E1). Agora que estou velho, ainda mais com isso, quem vai querer ficar perto de mim? (E4). Percebe-se, dessa forma, que as interações em torno da existência da infecção pelo HIV são fundadas mais na desconfiança e no fechamento do que na confiança e no desvelamento. A AIDS é uma ameaça de solidão e isolamento, haja vista que os entrevistados se referem freqüentemente à necessidade de se contar com suporte afetivo e material da família e dos amigos no momento em que mais precisam, mas sem a certeza de que isso irá ocorrer.
Ao entrar no processo de envelhecimento, a pessoa teme e vive formas sociais de discriminação, o que é agravado por se saber infectado pelo HIV, trazer consigo as representações sociais sobre a doença e se deparar com atitudes discriminatórias fundadas nelas. Sobre a discriminação existente ou imaginária, constata-se que "a não aceitabilidade é, em grande parte, ditada por aquelas práticas que diferem do status quo e por isso o subvertem. As representações sociais que constroem o 'outro' como aberração têm conseqüências para a prática. Elas permitem que esse 'outro' seja maltratado e discriminado: a subordinação daquelas pessoas, cujos sistemas de valores, práticas e identidades são diferentes, passa a ser apenas um desdobramento justo de uma lei considerada 'natural'".
O preconceito vivido e o medo de sofrê-lo estão presentes nos discursos dos entrevistados ao se referirem, por exemplo, ao mundo do trabalho, de forma acentuada. Esses compreendem a doença como mais um empecilho para o trabalho frente ao risco de serem também aí discriminados: As pessoas que trabalham lá vão falar: 'eu não, ele vai me contaminar. (E1); Eu estou com essa doença e o preconceito é muito grande. Trabalho, mas tenho contrato provisório, se descobrem, amanhã ou depois posso ser mandado embora e aí como é que eu vou sobreviver com essa idade, com essa doença e sem trabalhar? Não é fácil (E5).
Os entrevistados, no entanto, querem se sentir úteis e produtivos, capazes de se sustentar, mas se sentem diminuídos, com a doença se tornando mais um agravante de suas condições socioeconômicas precárias. Se se considerar que muitos daqueles que hoje vivem com HIV são pessoas sem nenhum tipo de especialização profissional, como no caso dos entrevistados, não é necessário ser pessimista para afirmar que a miséria só tende a se acentuar entre os portadores do HIV.
Espera-se que, com a idade, as pessoas possam se aposentar, mas as dificuldades são muitas para que isso aconteça, considerando-se, sobretudo, a precariedade das atividades profissionais das pessoas participantes do estudo. O que acaba por existir, de fato, é a possibilidade de se aposentarem somente por idade ou, com a doença, possibilidade de aposentadoria por invalidez, o que as pessoas entrevistadas, em sua maioria, gostariam, mas antes de adoecerem gravemente, já que não ganham suficientemente para o sustento e nem vislumbram perspectivas de conseguirem trabalho.
De uma maneira mais ampla, a aposentadoria, no Brasil, deixou de ser o marco que somente indicava aqueles que não tinham mais condição de realizar um trabalho produtivo. Hoje, muitos dos aposentados são pessoas que enfrentam, de um lado, a perda de papéis sociais à qual nem sempre conseguem adaptar-se e, de outro, uma sociedade que ainda tem uma imagem do idoso como uma pessoa muito vulnerável, mesmo que isto não seja verdadeiro. Porém, pode-se afirmar, pela análise das entrevistas, que as pessoas participantes do estudo têm uma vulnerabilidade econômico-social elevada, aumentada pela AIDSe pelas suas representações sociais, como afirma um dos entrevistados: ser velho e ter AIDSé ser duplamente discriminado. (E3).
O núcleo central
O núcleo mais central é aquele considerado mais rígido, o qual foi se sedimentando com o passar do tempo e com o reforço das informações veiculadas pelas conversas do cotidiano e pelas numerosas interações sociais. Acredita-se que tal núcleo seja o mais difícil de demover e menos acessível às campanhas de informação. Para os sujeitos com idade acima de 50 anos, o núcleo mais central a respeito da AIDS é de que a doença é uma ameaça constante de morte.
AIDS é uma ameaça constante de morte
A AIDS encarna a mais recente representação do mal do imaginário social do Ocidente e aparece no espaço público como uma morte anunciada. Para o autor, as figuras da lepra e da peste produziram dois grandes modelos de regulação do mal: para a primeira, a exclusão social e para a segunda, "a medicalização e a normatização massivas das redes sociais".
No caso dos entrevistados da presente pesquisa, expressões recorrentes do tipo se não for forte, você não agüenta não (E1), A AIDS é horrível, parece que é uma sentença de morte. Acho que essa é uma doença do século, que veio para deteriorar (E4), quanto mais velho a gente vai ficando, mais perto da morte está, né? Com esse 'trem' a gente pensa que vai mesmo mais rápido ainda (E2), explicitam a ameaça constante, tanto a idéia de ser uma doença fatal, como a insegurança a respeito da qualidade de vida, o "vai-e-vem" que resulta em que cada ano se vai decaindo mais (E5). Isso tudo significa a presença aguda da possibilidade de morte em curto espaço de tempo, mesmo que haja o contraponto advindo do uso dos anti-retrovirais e a esperança da cura, em longo prazo.
Nesse sentido, os entrevistados apontam para formas de resistência que os levam a suportarem essa ameaça constante de morte, que podem ser sintetizadas em desafio, heroísmo ou esperança. Uma forma de desafio frente às suas próprias condições; uma visão de heroísmo sobre si mesmos e a esperança de que a ciência encontrará a cura. Esses três mecanismos revelam a busca pela qualidade de vida na sobrevivência, combatendo o medo de morrer, a opressão e a subjugação à incurabilidade da AIDS que, coletivamente, se expressa no trabalho das associações, grupos de apoio, organizações não-governamentais e serviços de saúde(13). Esses participam na melhoria da qualidade de vida dos pacientes e muito podem contribuir para reconstruir socialmente as representações acerca da infecção pelo HIV/AIDS.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer da análise dos discursos foi possível compreender como a experiência com o HIV/AIDS é difícil e complexa e como são muitas as limitações da vida familiar e social dos sujeitos participantes. A análise das representações sociais, com a identificação do sistema periférico, com imagens mais distantes e mais próximas do núcleo central, permitiu desvelar que a presença da morte como uma ameaça constante concentra todas as outras representações em torno da doença e seu tratamento.
O conjunto aponta uma situação de vida das pessoas acima de 50 anos infectadas pelo HIV fundada no isolamento social, pelo medo de ser discriminado ou tê-lo sido, por ser infectado e caminhar para a velhice, pela falta de trabalho e de perspectivas concretas no quotidiano, além das dificuldades para manter o tratamento, desconfiança em relação aos profissionais de saúde, entre outras. As representações subjacentes a isso, encontradas na análise, mostram que ainda há muito que se fazer para romper com o senso comum e o imaginário contrários aos direitos de cidadania e às possibilidades de melhoria concreta da qualidade de vida dessas pessoas. Para tal, faz-se necessário elaborar ações que não se restrinjam ao tratamento medicamentoso, mas envolvam atividades multiprofissionais, transdisciplinares e intersetoriais, que respondem à problemática vivida pela pessoa infectada e de seus familiares, além de políticas de prevenção, tanto de cunho individual como coletivo, que levem à reconstrução das representações, retirando das subjetividades correntes as posturas de rejeição, de preconceito e de abandono atuais.
Os resultados do presente estudo também chamam a atenção para a importância da capacitação adequada dos profissionais da saúde para lidar com pessoas com idade acima de 50 anos e soropositivos para HIV/AIDS. Não basta entendê-los de maneira menos biologicista, faz-se necessário compreender o que se passa no imaginário dessas pessoas, criar espaços de possibilidade de interações francas, de acompanhamento constante e de suporte intersetorial, que permitam atenção efetiva, também social, das pessoas com idade acima de 50 anos infectadas pelo HIV.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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13. Brasileiro EM. O sexo nosso de cada dia. Goiânia (GO): AB Editora; 2000. [
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1 Trabalho Extraído da Dissertação de Mestrado

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